quinta-feira, 10 de março de 2016

Paulo Freire: a leitura do mundo

Paulo Freire: a leitura do mundo


"Ivo viu a uva", ensinavam os manuais de alfabetização. Mas, o professor Paulo Freire, com seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné Bissau, na Índia e na Nicarágua, descobrirem que Ivo não viu apenas a uva com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se a uva é natureza ou cultura.
Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza. Paulo Freire ensinou a Ivo que semear uva é ação humana na e sobre a natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Cosmos. Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários de Senai de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.
Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Ivo. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social. Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivo que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto que Ivo extrai o pretexto para agir. No início, meio e fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico. 
Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que a ave vê. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pesa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao imaginar-se com os pés no Sol.
Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência. Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o titulo de doutor honoris causa da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar, fui rezar com Nita, sua mulher e os filhos, em torno de seu semblante tranqüilo: Paulo via Deus.

Frei Bettto

Fonte: http://portal.mec.gov. br/seb/arquivos/pdf/Profa/col_3.pdf, acesso em 01/12/2007.

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